"Está
na hora do colírio, bebezinha da mamãe." Era assim, exalando amor materno, que
na semana passada a paulista Cacilda Galante Ferreira, de 36 anos, se aproximava
do berço aquecido em que dormia a filha Marcela de Jesus. A menina é a
protagonista de uma história rara. Raríssima. Ela nasceu sem o córtex cerebral.
Em casos como esse, os médicos dizem que metade dos bebês morre durante a
gravidez. A outra metade sobrevive algumas horas ou poucos dias depois do parto.
Os 70 dias de Marcela, completados no dia 29 de janeiro, são surpreendentes. Ela
nasceu com 2,5 quilos e 47 centímetros aos nove meses de gestação. Até a semana
passada, tinha engordado 400 gramas e crescido 3 centímetros.
Pela força das circunstâncias, os dedos da agricultora Cacilda tiveram de se
acostumar à suavidade. Habituaram-se a levantar cuidadosamente o capacete de
oxigênio colocado em volta da cabeça do bebê na Santa Casa de Patrocínio
Paulista, cidadezinha de 12 mil habitantes a 413 quilômetros de São Paulo. O
capacete facilita o trabalho dos pulmões. Sem ele, Marcela não teria durado
tanto. Nos primeiros dias, ela conseguia ficar até uma hora fora do equipamento.
Na semana passada, o máximo eram dez minutos.
FÉ
Durante a entrevista com Cacilda, Marcela agarrava com força o indicador de sua
mão. Quando a mãe conseguia se desvencilhar, ajeitava a menina e aplicava-lhe o
colírio lubrificante nos olhos. A cada gota, Marcela piscava. "Ela tem uma
sensibilidade nos olhos!", diz Cacilda. Não é apenas nos olhos cegos que Marcela
demonstrava sentir desconforto. Com a mãozinha, arrancou da boca a sonda que
levava o leite até o estômago. Os médicos instalaram uma nova sonda. Desta vez,
no nariz. Algumas outras reações: o incômodo por ficar muito tempo na mesma
posição. O choro provocado pelas cólicas. O estremecimento, ao som do telefone.
Essas reações, a respiração, os batimentos cardíacos e o funcionamento dos
órgãos internos só são possíveis por causa do tronco cerebral perfeito. Essa é a
estrutura que liga a medula ao córtex cerebral. "O tronco cerebral é uma área
nobre em termos de funcionalidade e está sendo capaz de manter as funções vitais
de Marcela", disse Luiz Celso Vilanova, chefe do setor de Neurologia Infantil da
Universidade Federal de São Paulo. "Mas o problema é letal em 100% dos casos."
Anencéfalos que têm o tronco cerebral completo costumam sobreviver por mais
tempo. Mais cedo ou mais tarde, porém, o corpo em crescimento começa a exigir
maior vascularização, os pulmões precisam de mais movimento respiratório e o
tronco cerebral não consegue suprir tantas demandas. A criança morre por
falência múltipla dos órgãos. Marcela sofreu uma parada cardíaca em dezembro.
Foi reanimada com massagem.
Ela não é o primeiro caso de sobrevivência prolongada no Brasil. Mas relatos
científicos são escassos, quase inexistentes. "A medicina ainda tem de aprender
muito sobre anencefalia", afirma o ginecologista Jorge Andalaft Neto, da
Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), um
dos principais defensores do direito a interrupção da gravidez em casos de
anencefalia. "Quando vemos o bebê no útero, não sabemos quanto ele vai viver.
Ele nasce, e vemos quanto tempo dura."
Com a evolução da ressonância magnética, os especialistas acreditam que no
futuro será possível traçar parâmetros de sobrevivência. Cada anencéfalo poderá
ser submetido ao exame para detectar a quantidade de cada tecido presente no
tronco cerebral ou nas pequenas áreas do córtex, quando existentes. Ao cruzar
essas informações com o tempo de sobrevivência observado em cada caso, será
possível estimar quantos dias um novo feto poderá viver.
´´Cuido da Marcela sem pensar que ela é anencéfala: falo com ela e procuro
mantê-la sem sofrimento´´
Marcia Beani, pediatra
"Nunca ouvi falar de um anencéfalo que tenha vivido dois meses ou mais. Eles
costumam viver no máximo dois dias", disse a ÉPOCA Marcy C. Speer. Ela é
diretora do Centro de Genética Humana da Duke University, na Carolina do Norte,
e lidera pesquisas sobre fatores genéticos e ambientais que levam a defeitos de
desenvolvimento como a anencefalia. O principal deles é a falta de ácido fólico
- uma vitamina do complexo B - durante a gravidez (veja a ilustração à pág. 76).
A suíça Monika Jaquier, mãe de uma menina anencéfala que sobreviveu por apenas
13 horas, coletou dados sobre o desfecho de 211 casos cujos pais optaram por
manter a gestação. A pesquisa foi publicada no ano passado no British Journal of
Obstetrics and Gynaecology. Apenas seis bebês viveram mais de seis dias. O
recorde foi 28 dias.
O crânio de Marcela não chegou a se formar. Nem o assoalho ósseo que acomoda o
globo ocular. Nasceu com os olhos projetados para fora do rosto e, no lugar da
testa e da cabeça, com uma massa de tecido mole sem forma e sem função. O tronco
cerebral se responsabilizou pelas reações automáticas: piscar, sugar, apertar
objetos, reagir à dor. Mas um bebê sem cérebro não desenvolve emoções,
sentimentos, pensamentos. Nem uma vida autônoma.
"Tenho esperança de levá-la para casa, mas ela já não é minha. Entreguei-a a
Jesus", disse Cacilda. A agricultora soube que a filha era anencéfala por meio
de uma ultra-sonografia realizada no quarto mês de gestação. O médico José Mauro
Barcellos, que também é o prefeito da cidade, revelou o diagnóstico a Dionísio,
marido de Cacilda, e pediu que ele desse a notícia. Dionísio reuniu a família
para rezar o terço e só depois contou a Cacilda. Ela ficou triste. Mas também
resignada. "Se Deus me escolheu, que seja feita a vontade dele", diz.
Cacilda decidiu levar a gravidez adiante. O ambiente católico da pequena
Patrocínio Paulista colaborou para a decisão. O médico-prefeito nem chegou a
mencionar que ela poderia interromper a gestação com autorização judicial. Mais
de 3 mil autorizações já foram expedidas no Brasil em casos como esse. É um
procedimento para amenizar o sofrimento da mulher que carrega no ventre uma vida
sem futuro. Barcellos discorda."Sou cristão, e acho que a mãe deve levar a
gravidez até o fim."