Veja o artigo da Presidente do Conselho Federal de Medicina - Como vejo a medicina e os médicos
Dr Edson de Oliveira Andrade - Pneumologista e presidente do Conselho Federal de Medicina.
Publicado no(a) Em: 20/1/2004 - fonte: CFM- www.portalmedico.org.br
Ser médico
nunca foi tarefa fácil. Sempre se exigiu do indivíduo, não importando o
tempo e as circunstâncias sociais envolvidas, que pretendesse exercer o
ofício de médico um talhe social diferenciado. Se no princípio éramos
tidos e aceitos como intermediários entre os homens e os deuses, o que
originou parte do conceito de ser a Medicina um sacerdócio, hoje nos é
cobrado o papel de depositários de um desejado, por infinito, conhecimento
científico que vence todas as doenças e afasta o inevitável e derradeiro
confronto da humanidade individual: a morte. E tudo isso em apenas um único
ser humano.
Companheira do homem em sua jornada
terrestre, a Medicina tem
sido responsável por grande parte do sucesso alcançado pela humanidade na
melhoria da qualidade e quantidade de vida experimentada pelo homem. Nos
últimos anos, seus avanços ajudaram a duplicar o tempo médio de vida: dos
35 anos de vida previstos na sociedade industrial inglesa do início do
século passado passamos para os 65 anos previstos atualmente para o nosso
Brasil.
Junto a este tempo adicional de vida agregou-se qualidade pelo
controle das doenças.
Mas Medicina não é apenas números e estatísticas.
Medicina é e sempre será sentimento e arte. Sentimento que nasce do
indissociável
compromisso de solidariedade com o
homem. Arte que aflora da
sensação de que o conhecimento científico não encerra em si toda a
natureza do nosso ofício. A Medicina transcende ao óbvio tecnicismo, é
muito mais que um desejo de conhecimento:
é um sonho de transformação.
E nós,
médicos, somos apenas guardiões deste sonho.
Como um guardião de tão belo patrimônio deve
se comportar em sua defesa é questão posta a todos nós, médicos
brasileiros. Aos médicos são exigidos três níveis de comportamento. Um médico
estará incompleto se descurar do necessário aprimoramento técnico.
O saber,
primeira exigência de qualidade profissional, dá ao médico as primeiras
pedras do alicerce onde se assenta o prestígio e a respeitabilidade da
profissão. Tarefa difícil, permanente e em constante mutação, nos exige
esforço persistente e imorredouro. Como estímulo a este árduo e necessário
trabalho, cabe lembrar que o conhecimento liberta e o conhecimento médico
mais, transforma.
Mas o conhecimento médico não é apenas um
deleite do espírito humano; ele é transformador por ser um instrumento de
trabalho, uma ferramenta operativa, um arado a abrir sulcos na terra e a
plantar esperanças. Assim, deve o médico ser
operante; ser um trabalhador;
ser a mão que segura o arado e, se preciso, como um dia Oswaldo Cruz o foi, a
mão que guia, o próprio arado e a força motriz que abre as veias por onde
deverão passar livres os sonhos de um futuro melhor e mais justo. É preciso
saber, e com o saber, fazer.
Ser médico não é tarefa fácil. Qualquer
outra profissão já estaria satisfeita preenchendo estas duas exigências
anteriormente detalhadas. Mas a nossa história sobre a Terra nos impõe outro
compromisso: o
saber ser.
Ator social ímpar, companheiro constante, o médico
é historicamente tido como um paradigma. Seus atos não são e nunca serão
vistos e avaliados em igualdade de condições com as demais profissões. De
quem se espera mais, se cobra mais. Penso que não exista neste comportamento
social nenhum tratamento prejudicial ao médico, trata-se apenas do reverso da
moeda de privilégios de que dispomos. E antes que o leitor interrompa a
leitura por indignado com a afirmação de privilégios contida no texto,
deixe-me dizer que também me indigno, e luto, contra as políticas de saúde
que desconsideram o nosso papel profissional e aviltam o nosso trabalho; mas não
há como confundir políticas de governo com a sociedade, nem tampouco
extratos sociais com o todo social - estas são sempre transitórias e estão
ao sabor das conveniências.
Voltando ao fio da meada, falo de
privilégios
como ter acesso pleno ao corpo das pessoas, ter conhecimento dos seus mais íntimos
segredos pessoais e poder interferir em suas vidas ao ponto de modificá-las
em sua totalidade. Quem detém tamanhos privilégios por certo tem iguais
responsabilidades sociais. Desta forma, o guia do arado não pode ser qualquer
um, tem que ser alguém especial, não melhor ou maior que os outros, mas
magnificamente especial.
Ser médico é algo extremamente complexo, porém
necessário. É algo arriscado, porém preciso. É algo difícil, porém possível.
É algo sofrido, porém fonte de felicidade para quem gosta de gente e de
observar no outro o sonho de ver em cada um a extensão de sua própria
humanidade.
Este artigo é uma insuficiente homenagem a
incontáveis médicos, famosos e anônimos, que fizeram destes compromissos o
alicerce onde se assenta a cidadela da Medicina, e especialmente a Mário
Rigatto que me ensinou a ver a
Medicina como fonte inesgotável de felicidade
e ventura.