CLÁUDIA COLLUCCI
da Folha de S.Paulo - 04/07/05
Uma nova resolução do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo) considera ético limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida
do doente incurável em fase terminal. Para advogados criminalistas, a medida não
tem força de lei e não isenta o médico de uma ação penal por eutanásia.
A norma do conselho, ainda não publicada, foi colocada para consulta pública
no site do Cremesp. Para que possa vigorar, deve ser submetida à plenária do
órgão, que será realizada no início do próximo mês.
De acordo com a resolução, a decisão médica de suspender os procedimentos
que mantêm vivo o doente, como a respiração artificial, deverá respeitar a
vontade do paciente ou, na sua impossibilidade, a do seu representante legal.
A norma também prevê que o doente ou sua família sejam informados sobre as
conseqüências da suspensão ou da continuidade dos procedimentos e tratamentos
que permitem o prolongamento da vida do paciente. A decisão deve ser registrada
no prontuário médico do doente.
A resolução não se refere à eutanásia ativa, que ocorre quando o médico
provoca a morte do paciente, pela administração de medicação, por exemplo.
Para o advogado criminalista José Luís Oliveira Lima, a resolução elaborada
pelo Cremesp fere a legislação penal.
"Apesar de na prática médica [a eutanásia] já existir, essa resolução
não isenta o médico ou o familiar que autorizar a suspensão do tratamento de
responder a uma ação penal por eutanásia", defende Lima.
A avaliação da advogada Márcia Regina Machado Melaré, vice-presidente da
OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo), vai na mesma linha:
"A eutanásia não é autorizada por lei. A resolução não tem respaldo
legal", diz a advogada.
Porém, ela afirma que, pessoalmente, fica feliz com essa medida do Cremesp
porque compartilha a idéia de que a vida tem de ser digna até o fim. "O
tratamento fútil é indigno."
Dilema
Na avaliação do médico Reinaldo Ayer de Oliveira, conselheiro responsável
pela resolução, a meta é enfrentar um dos principais dilemas éticos vividos
pelo médico: como proceder diante de um paciente terminal?
"Não nos cabe mudar a lei. Mas podemos dizer ao médico que determinado
comportamento não é considerado antiético", explica.
De acordo com Oliveira, a consulta pública --a primeira do gênero já feita
pelo Cremesp-- será o termômetro para saber o que a sociedade pensa a respeito
dessa decisão do conselho.
A polêmica não pára por aí: a norma do Cremesp também considera ético que
o médico suspenda todos os procedimentos que mantenham o funcionamento de órgãos
vitais de um doente com morte encefálica que não seja doador de órgãos.
Atualmente, a legislação só permite essa atitude em casos de pacientes
doadores de órgãos.
"Hoje, o médico tem medo de aceitar que ali existe uma pessoa morta. Isso
leva muitas pessoas a viverem em estado vegetativo."
Cuidados paliativos
O conselheiro do Cremesp diz que, qualquer que seja a decisão do paciente ou da
família, o doente deverá continuar recebendo todos os cuidados necessários
para aliviar o seu sofrimento. "O médico não vai abandonar o
paciente."
Tão logo a resolução seja publicada, é objetivo do Cremesp lançar um manual
sobre os cuidados paliativos e as normas que as clínicas que já desenvolvem
esse tipo de trabalho devem seguir.
Para a médica Maria Goretti Maciel, presidente da Academia Nacional de Cuidados
Paliativos, a resolução do Cremesp deveria conter mais detalhes como a definição
do que é considerado um estágio terminal e os métodos de sedação indicados
para os pacientes que estejam nessa situação.
Ela afirma que são conhecidos na área médica os coquetéis de sedativos que
dopam o paciente. "O M1, por exemplo, abrevia a vida do doente, tirando-lhe
a oportunidade de viver seus últimos dias consciente, ao lado da família."
Na última quinta-feira, foi realizada uma reunião no Cremesp para discutir a
resolução.
Na opinião da pesquisadora Maria Júlia Kovács, do Laboratório de Estudos
sobre a Morte, do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), a
resolução do Cremesp é bem-vinda.
A medida, diz Kovács, poderá evitar que certos procedimentos adotados na UTI
continuem sendo "verdadeiras torturas" para o paciente terminal.