Proposta para deixar morrer bebés com doenças ou
deficiências incuráveis ou intratáveis é defendida na Holanda e em
Inglaterra, mas rejeitada, sem margem para dúvidas, em Portugal, por médicos
e pais. “Estamos sempre à espera de um milagre”, dizem.
Carla Marina Mendes
Direito à vida: Bebés com doenças incuráveis
Portugal contra eutanásia
Fonte Correio da Manhã - Portugal / 01/2007
A possibilidade de um milagre está sempre connosco e estamos à espera
desse milagre. Não vamos assinar a sentença de morte do nosso filho.” As
palavras vêm de longe, da Argentina. Saem da boca de José Anderson, pai de
Brian, de cinco anos, que permanece em estado considerado vegetativo
irreversível desde 2005, quando foi vítima de atropelamento. Apesar de
desenganado pela medicina, José recusa-se a deixar morrer o filho. Os
médicos que o assistem pedem à Justiça autorização para desligar as máquinas
que mantêm viva a criança. Recusam a acusação de quererem a morte de Brian.
Falam antes em deixá-lo morrer com dignidade, um tema que está a dar que
falar do outro lado do Atlântico.
No Velho Continente, primeiro foram os holandeses, depois os belgas, agora
chegou a vez dos britânicos. O assunto, ainda que apresentado de forma
diferente, é o mesmo: eutanásia em bebés e crianças com doenças e
deficiências incuráveis e intratáveis. Um tema que ganhou lugar na ordem do
dia, dando origem ao actual debate.
Em Portugal falam mais alto as vozes que se levantam contra a possibilidade
desta prática. Paula Costa, presidente da Raríssima – Associação de
Deficiências Mentais e Raras, incomoda-se com o tema, mas não tem dúvidas.
“Os pais não desistem nunca”, avança com a certeza conferida pela
experiência de lidar com pais que, como ela, são obrigados a enfrentar o
drama de ver sofrer os filhos com raras esperanças de melhoras. “Mas quem é
que toma uma decisão dessas em nome dos filhos? Quem é o pai que diz aos
médicos para porem fim a uma vida que foram eles que trouxeram ao mundo?
Estamos a falar de um filho, que é o que temos de mais sagrado.”
Paula Costa fala em nome dos pais que integram a associação que dirige, “com
casos dramáticos de crianças que são quase vegetais”, mas que “lutam até ao
fim pela vida”.
EXIGIDA NOVA LEI
Foi o Real Colégio de Obstetras e Ginecologistas do Reino Unido que
devolveu à actualidade, na Europa, o debate sobre a aplicação da forma
activa de eutanásia nas crianças nascidas com incapacidades que as condenam
a uma vida de dor.
Na Holanda, o primeiro país no Mundo a legalizar a eutanásia nos adultos,
são os médicos que clamam por novas leis que lhes permitam pôr fim à vida de
bebés que nascem com doenças para as quais a medicina não consegue dar
resposta ou alívio. Decisão que, para o médico Daniel Serrão, professor
universitário e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da
Vida, não tem qualquer justificação. “É inaceitável. Mas a partir do momento
em que se aprovou, na Holanda, a lei que permite a eutanásia em adultos, as
crianças eram as vítimas que vinham a seguir.” De acordo com o especialista,
criou-se a definição de ‘vida má’ que, adianta, vai permitir “eliminar quem
tem a garantia dessa vida má”. No entanto, defende, quando se trata de
crianças que nascem com malformações graves “não se justifica desacelerar o
processo de vida, mas sim de acolhê-las com carinho”.
Contra os argumentos que justificam a eutanásia com o fim do sofrimento,
responde com as práticas médicas disponíveis. “Há tratamentos para o
sofrimento e para a dor, que são situações clínicas.”
O vice-presidente da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral, Abílio
Cunha, tem a mesma opinião: “Conhecemos casos em que, quando nasceram, as
crianças foram dadas como seres vegetativos e depois acabaram por se revelar
uma surpresa. “A nossa batalha tem de ser para dar às pessoas mecanismos que
lhes proporcionem qualidade de vida.”
DESLIGARAM-LHE A MÁQUINA PARA ACABAR COM A DOR
Em Itália, Piergiorgio Welby, de 60 anos, foi o nome por detrás do renascer
do debate à volta da eutanásia naquele país. Vítima de distrofia muscular
progressiva e paralisado há dez anos, Welby pediu que fosse desligada a
máquina que o mantinha vivo. Em Setembro, enviou um vídeo ao presidente
italiano, Giorgio Napolitano, em que pedia o direito à morte. Conseguiu
finalmente um fim para o sofrimento que dizia ser interminável com a ajuda
de um anestesista, que desligou o aparelho que substituía os pulmões,
permitindo-lhe que respirasse. Segundo o médico, não se tratou de eutanásia
– o que lhe podia valer uma condenação até 15 anos de prisão – mas apenas de
cumprir a vontade do doente em não prosseguir com o tratamento.
No passado dia 24, o funeral de Welby levou centenas de pessoas às ruas em
protesto contra a decisão da Igreja, que não permitiu o serviço religioso
uma vez que Piergiorgio tinha pedido, inúmeras vezes, para morrer. O desejo
de morte, exigido pelo doente, levou mesmo o Papa Bento XVI a entrar no
debate, condenando, uma vez mais, a eutanásia e reafirmando que a vida é
sempre sagrada.
EMOÇÃO EM ESPANHA
Muitos têm sido os apelos feitos, um pouco por todo o Mundo, por doentes que
pedem a morte. A história comovente de um deles, o espanhol Ramón Sampedro,
deu mesmo origem a um filme – ‘Mar Adentro’, interpretado pelo actor Javier
Bardem – que narra a luta que levou a cabo, primeiro pela vida e depois pela
morte.
Tetraplégico aos 26 anos, Sampedro lutou na Justiça espanhola pelo direito a
morrer. Ao fim de um processo judicial que durou cinco anos, as autoridades
negaram-lhe a eutanásia activa voluntária. No entanto, com o apoio de
amigos, Ramón Sampedro planeou a sua morte, que chegou finalmente a 15 de
Janeiro de 1998.
A autópsia apontou como causa a ingestão de cianeto e os últimos minutos de
vida, que deixou gravados em vídeo, revelam que se suicidou com a ajuda de
amigos, que colocaram os medicamentos ao alcance da sua boca.
Uma das amigas de Sampedro foi acusada de homicídio. Mas um movimento
internacional de pessoas que enviaram cartas “confessando o mesmo crime”
impediram que a Justiça conseguisse condená-la, tendo o processo sido
arquivado.
O DRAMA DA PEQUENA CHARLOTTE
A proposta a favor da eutanásia surgiu na sequência do caso da pequena
Charlotte Wyatt, uma prematura que nasceu com problemas graves de coração,
cérebro e pulmões e deu origem a uma batalha legal sobre o seu direito a
viver. Para os médicos do Hospital de St. Mary, em Portsmouth, onde esteve
internada três anos, Charlotte sofria dores constantes, sem possibilidade de
desenvolvimento normal ou de vir a ter, um dia, uma vida independente.
Os especialistas solicitaram aos tribunais autorização para nada fazerem
para prolongar a vida da criança. Mas os pais lutaram sempre para que a bebé
continuasse viva. Charlotte nasceu às 26 semanas, com 453 gramas, em 2003 e
teve alta do hospital onde sempre viveu uma semana antes do Natal. Apesar de
viva, os médicos garantem que será sempre dependente de terceiros.
FACTOS E DATAS
PERPÉTUA NOS EUA
Em 1920 o norte-americano Frank Roberts envenenou a mulher, que sofria de
esclerose múltipla, com arsénico, a pedido dela. Foi condenado a prisão
perpétua e acabou por morrer na prisão.
HOLANDA PIONEIRA
Em 1971, na Holanda, uma médica injectou uma dose elevada de morfina na mãe
doente, acabando-lhe com a vida. Foi condenada a um ano de prisão. Mais
tarde, em 1993, os holandeses publicaram uma lei impedindo que sejam
processados médicos que pratiquem eutanásia ou suicídio assistido. Foi o
primeiro passo, que culminou em 2000 com a aprovação de legislação sobre
eutanásia. A Holanda foi o primeiro país do Mundo a legalizar esta prática.
BELGAS A SEGUIR
A Bélgica foi o segundo país a legalizar a eutanásia. Depois de dois dias de
aceso debate, o Parlamento de Bruxelas aprovou a lei, com 86 votos a favor e
51 contra. Apesar da aprovação, a eutanásia só é permitida quando o doente
que quer pôr fim à vida está consciente do pedido e o repete mais do que uma
vez.
SUICÍDIO ASSISTIDO
Na Suíça é permitido o suicídio assistido por médicos ou profissionais da
área da saúde, mas a eutanásia não é legal naquele país. Nos Estados Unidos
o estado do Oregon tornou possível, em 1994, que os médicos prescrevam uma
dose letal de medicamentos a doentes em fase terminal.
MÉDICOS EUROPEUS
Em 2005, o Comité Permanente dos Médicos Europeus reviu os fundamentos da
proposta holandesa para eutanásia infantil e rejeitou qualquer proposta para
legalizar o uso de meios activos para pôr fim à vida dos mais pequenos
afectados por doenças incuráveis (congénitas ou prematuros com sequelas
graves). |