LEITO SELETIVO

Humberto Costa disse que proposta de limitar acesso à terapia intensiva tornou-se debate político
Ministro da Saúde recua e pára a discussão sobre restrição em UTI

EDUARDO SCOLESE
ENVIADO ESPECIAL A ACRA (GANA) 13/abril/2005 - FOLHA

O ministro Humberto Costa (Saúde) recuou ontem na decisão de criar normas para a internação de pacientes nas UTIs (unidades de terapia intensiva) brasileiras e anunciou o engavetamento das discussões sobre o assunto.
"Essa discussão, da forma como está colocada, precisa ser reposta. Estamos suspendendo o debate para começá-lo no momento em que possamos reposicionar a discussão e deixar claro à população que não existe qualquer risco de as pessoas deixarem de ter acesso ao serviço", disse em entrevista, ontem à tarde, em Acra (Gana).
Anteontem, em Iaundê (Camarões), Costa havia dito que a iniciativa não encontraria "polêmicas" nem "resistências" em torno da formulação, com prazo até então para meados do ano. Chegou a citar um exemplo: uma pessoa com morte cerebral, segundo critérios, não ocuparia uma vaga de UTI em detrimento de outra.
Como revelou a Folha na última segunda, o ministério trabalhava com o objetivo de criar normas para restringir os leitos de UTI só para pacientes graves com chances reais de recuperação. A iniciativa causou reações negativas em setores médicos e no Congresso.
Costa disse que a discussão causou reações "políticas" em vez de polemização técnica. A partir de agora, diz, não há prazo para retomar a conversa. "Queremos fazer a discussão de forma correta, situá-la em nível técnico e impedir que haja má compreensão ou insegurança pela população."
O ministro garantiu que a eventual normatização do tema não excluirá o poder de decisão do médico de optar ou não por internar o paciente em UTI. "Ainda que existam normas e protocolos, será sempre o profissional que tomará a última decisão", afirmou. "Nenhum brasileiro sofrerá qualquer tipo de restrição no acesso a leitos de UTIs quando houver indicação médica", acrescentou.
Hoje, a estimativa é que de 15% a 20% dos internados nas unidades estejam em estado incurável.
Costa disse também que a informação de que o governo discute a criação das normas veio de forma não planejada.
"A discussão não foi aberta [pelo Ministério da Saúde]. Havia expectativa, mas surgiu uma notícia no jornal [Folha].

 

11/04/2005 - 09h52

Governo federal quer restringir UTI a doentes com chances de recuperação

CLÁUDIA COLLUCCI
da Folha de S.Paulo

O Ministério da Saúde vai criar normas que permitam selecionar o tipo de paciente que ocupará um leito de UTI. A idéia é que entrem e permaneçam nas unidades de terapia intensiva da rede pública só pacientes com chances reais de recuperação.

Para isso, serão estabelecidos indicadores de prognóstico, baseados em evidências científicas, utilizados tanto na internação como na alta. Hoje, estima-se que de 15% a 20% dos pacientes internados nas UTIs sejam incuráveis.

As normas vão compor a nova política para pacientes críticos e serão concluídas até junho, quando devem passar pelo crivo dos secretários estaduais e municipais de saúde, além do CNS (Conselho Nacional de Saúde).

Pela primeira vez na sua história, a câmara de bioética do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) também discute a elaboração de uma medida que salvaguarde o médico em condutas adotadas com o paciente irrecuperável.

"Com a falta de leitos, a todo momento o médico tem que decidir sozinho quem fica e quem sai da UTI", afirma o infectologista Caio Rosenthal, membro da câmara e um dos conhecidos defensores da eutanásia quando não há mais recursos de tratamento.

Do ponto de vista prático, a política do Ministério da Saúde também visa melhorar a oferta de leitos de UTIs. Dos 27 Estados, apenas dez têm índices de leitos compatíveis com o preconizado pela própria pasta.

Para Arthur Chioro, diretor do departamento de atenção especializada da SAS (Secretaria de Atenção à Saúde), do Ministério da Saúde, o maior problema não é a falta de leitos, mas a má gestão dessas unidades e a falta de profissionais intensivistas (médicos que atuam nas UTIs) capacitados.

O ministério também pretende discutir a distanásia (prolongamento da vida de modo artificial, sem perspectiva de cura ou melhora). "Precisamos criar na sociedade a cultura da boa morte, da qualidade da vida até o fim, não do prolongamento desnecessário", afirma Chioro.

Médicos intensivistas e os que lidam com pacientes críticos consideram a iniciativa salutar, mas vêem problemas ao colocá-la em prática. O presidente da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), José Maria da Costa Orlando, afirma que hoje os médicos sofrem muita pressão da família do doente para interná-lo na UTI, mesmo diante de um diagnóstico incurável. "Os médicos não se sentem seguros em decidir quando parar de investir em um paciente sem cura."

Em vários países da Europa há critérios de admissão do paciente crítico na UTI, mas, na prática, não são aplicados. O mesmo deve acontecer no Brasil, na avaliação de David Edbrooke, consultor da European Society of Intensive Care Medicine (ESICM), instituição que está desenvolvendo um estudo com 8.000 casos de pacientes críticos.

O infectologista David Uip, diretor-executivo do Incor (Instituto do Coração), considera a iniciativa do ministério bem-vinda. "Quanto mais protocolada for a medicina, menor é a chance de erro e menor é o custo", diz. Ele afirma que o Incor está discutindo a questão. "É preciso quebrar paradigmas, reconhecer as limitações, especialmente quando lidamos com dinheiro público."

Para o médico Roberto Luiz D'Ávila, corregedor do Conselho Federal de Medicina, a decisão de entrada e de saída de um paciente da UTI deve ser do médico, não do governo. "Cada paciente evolui de maneira diferente."

Arthur Chioro explica que os critérios para a nova política serão elaborados pelos técnicos do ministério em parceria com intensivistas. A nova política prevê a criação de plantões controladores de leitos de UTI, que vão encaminhar pacientes aos hospitais onde há vagas de terapia intensiva.

Também devem ser elaboradas normas para o cuidado do paciente grave fora da UTI, como nas unidades de emergência, nas UTIs semi-intensivas, nas enfermarias e nos casos em que o doente preferir ficar em casa.

 

INTERNAÇÕES EM UTI - FOLHA

Faz sentido a idéia do governo de estabelecer diretrizes para internações em unidades de terapia intensiva (UTIs). Esses leitos reservados para pacientes graves existem em número finito e menor do que o necessário. A expansão é necessária e deve ser perseguida. Mas, mesmo que não houvesse déficit de vagas, seria bem-vinda uma seleção mais cuidadosa dos pacientes que devem seguir para uma UTI.
Não se trata aqui de escolher quem vai morrer ou de interferência estatal sobre destinos individuais, mas apenas de tentar disseminar o bom senso. Todos concordarão que um adolescente que tenha sofrido um acidente e tenha boas chances de recuperação deve ter prioridade num leito de UTI. De modo análogo, pode-se afirmar que a maioria considerará cruel manter por todos os meios a vida de um paciente terminal de câncer que padeça de dores excruciantes. Grande parte do problema reside em decidir sobre casos menos óbvios.
O Ministério da Saúde deve, sim, propor critérios com base em evidências clínicas e estatísticas, mas não deve esperar que as normas sejam aplicadas à risca. Cada caso é único, e a decisão final só pode caber ao médico, que é quem está em contato com o paciente e seus familiares.
As regras devem servir mais para tentar promover entre profissionais de saúde e a sociedade em geral uma mudança de cultura, que valorize a qualidade de vida. Isso se faz ao oferecer ao médico argumentos que possam ser usados para justificar a manutenção de certos pacientes graves no leito comum ou em casa.
Subjaz a essa questão das UTIs o problema dos custos em medicina. Argumentos financeiros não devem ser decisivos, mas tampouco podem ser ignorados. E novas tecnologias, que são usadas intensivamente em UTIs, são sempre muito caras. Trata-se de um remédio que precisa estar ao alcance do maior número possível de pacientes. E isso, num contexto de carência de recursos, exige que seja utilizado com parcimônia.

País não atinge mínimo de leitos

DA REPORTAGEM LOCAL - FOLHA

Por causa de déficits regionalizados, o Brasil ainda não atingiu o percentual mínimo de leitos de UTI para o total de vagas na rede hospitalar, mas está perto disso.
Segundo a última avaliação do Ministério da Saúde, de maio de 2003 até março deste ano houve uma expansão de 10.235 leitos no país, totalizando em março 21.528 vagas, acima do mínimo calculado como necessário, 17.911.
O percentual mínimo de leitos de UTI sobre o total de vagas da rede, definido em 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), é de 4%. Em maio de 2003, depois de FHC ter deixado o cargo, o percentual era de 2,06%.
Hoje, em média, 3,74% dos leitos são de UTI no país. A situação é pior no Norte e Nordeste. No Estado mais deficitário, Rondônia, o percentual é de 1,05%. Em Roraima e na Bahia, 1,63% e 1,84%, respectivamente .
Segundo Arthur Chioro, diretor do Departamento de Atenção Especializada do ministério, a preocupação agora não é mais expandir leitos nacionalmente, mas concentrar esforços no Norte e no Nordeste e melhorar o aproveitamento das vagas.
A média nacional de ocupação de leitos de UTI, segundo ele, está em torno de 60%, o que demonstraria a ociosidade em algumas regiões -e problema na organização do uso das vagas.
Ele reconhece a dificuldade para encontrar pessoal capacitado para ativar os leitos e diz que a pasta está desenvolvendo políticas de capacitação de médicos dessas regiões. Segundo Chioro, o setor da medicina intensiva recebeu R$ 124 milhões a mais do orçamento da saúde desde 2003.

Má gestão
O ministério utiliza o exemplo da cidade do Rio, sob intervenção federal na rede hospitalar, para demonstrar que também a má gestão explica os problemas na área de terapia intensiva. No hospital Miguel Couto, na zona sul, dos 14 respiradores artificiais, 11 estavam quebrados e os três restantes estavam sem manutenção desde setembro do ano passado, por isso havia leitos desativados.
A Prefeitura do Rio tem dito que os problemas nos hospitais sob intervenção federal se deve à ausência de repasses da União.
(CC e FABIANE LEITE)