REVISTA: MEDICINA & BEM-ESTAR - ISTO É 28/03/2007
Montagem sobre fotos de Biô Barreira e Max G Pinto  


 

SAÚDE
O que os médicos
odeiam nos hospitais
 

As carências, os pontos fracos e os
erros mais irritantes na opinião de
especialistas que lutam todos os
dias para salvar vidas nos centros
de atendimento médico do país

Por CELINA CÔRTES e MÔNICA TARANTINO

Ninguém conhece tão bem os problemas camuflados na rotina dos hospitais quanto os próprios médicos. Na luta para salvar vidas, eles muitas vezes se desdobram para superar esses obstáculos. E no Brasil, como se sabe, eles nunca foram poucos na área da saúde. ISTOÉ entrevistou alguns dos melhores especialistas do País em suas áreas para descobrir o que mais os incomoda nos hospitais e o que pode ser feito para melhorar o atendimento. Os problemas apontados são variados. Vão da falta de treinamento nas unidades de pronto-socorro ao descaso com a alimentação dos doentes. Situações raramente comentadas com os pacientes e seus acompanhantes, mas que devem ser alvo de muita atenção.

1 - incompetência no pronto-socorro
O atendimento no pronto-socorro determina a vida ou a morte, além das seqüelas que um paciente poderá ter. “Não suporto ver que os pronto-socorros brasileiros são nichos de médicos mal preparados e mal remunerados. Lá fora eles têm equipes treinadas e bem pagas”, afirma o cardiologista Sérgio Timerman, com a autoridade de quem trabalhou muitos anos em pronto-socorros e lidera debates e organizações internacionais de atendimento de urgência. No País são pouquíssimos os pronto-socorros nos quais os profissionais recebem treinamento específico, que corresponde, na aviação, aos exercícios de simulação feitos pelo piloto. O mais comum é ser atendido por um médico recém-formado e despreparado, que dá plantão apenas para complementar o orçamento. “Essa precariedade vai continuar se não houver regulamentação para a formação desses profissionais. Os conselhos de medicina e a Associação Médica Brasileira precisam olhar para esse problema”, diz Timerman. Para se protegerem, as pessoas devem se informar sobre os serviços ao seu redor.

2 - A restrição da tecnologia
O desafio do cardiologista paraense Silas Galvão Filho, 52 anos, é normalizar o ritmo do coração dos pacientes com arritmia. Seus principais aliados são um procedimento chamado ablação por cateterismo e o implante de aparelhos que regularizam os batimentos, os marcapassos e desfibriladores. Muitas vezes, esses equipamentos são o último recurso para viver mais. Mas isso não é suficiente para agilizar a liberação do tratamento pelos planos de saúde ou pelo governo. A maioria dos planos não paga as próteses. No SUS, a espera é de três a quatro meses. A fila começou depois de cortes nos procedimentos mais caros. Pode ser tempo demais. “A coisa que eu mais odeio é esse acesso difícil e demorado. Já vi pacientes terem morte súbita à espera dos aparelhos”, diz Galvão Filho, responsável pela clínica de Ritmologia Cardíaca do Hospital Beneficência Portuguesa. Os pacientes devem se inscrever em diversos serviços, entrar com ação na Justiça e pedir aos planos. Se for possível, o melhor é comprar. Os valores ficam entre R$ 15 mil e R$ 70 mil.

3 - a exigência de produzir mais
O conflito entre a política de aumento da produtividade dos médicos, que domina os hospitais, e o cumprimento das normas básicas de segurança pode ter conseqüências sérias. É o que incomoda o infectologista Renato Grinbaum, 42 anos, do Comitê de Controle de Infecção Hospitalar do Estado de São Paulo. Na corrida para elevar o número de cirurgias e receber os reembolsos correspondentes do SUS e dos planos de saúde, há hospitais enchendo o seu espaço físico de forma exagerada para atender cada vez mais gente. “Essa política interfere na segurança e no controle de infecções nos hospitais”, diz Grinbaum. Como? A redução de espaços atinge áreas cruciais, como aquelas reservadas aos procedimentos de esterilização de equipamentos. Os locais onde o paciente descansa depois da cirurgia também estão cada vez menores. Isso desobedece normas de vigilância sanitária e tem desdobramentos. Um dos mais graves é a execução parcial dos processos de esterilização. Como há princípios de desinfecção que não podem ser prescindidos, a corda arrebenta do lado mais fraco: o aumento de complicações pós-cirúrgicas e riscos de infecção hospitalar.

4 - o alto custo dos remédios
A médica carioca Mara (nome fictício) sente na própria pele os dramas de muitos pacientes para conseguir remédios de alto custo. Uma transfusão de sangue há três décadas infectou-a com o vírus da hepatite C. A doença evoluiu para um tumor no fígado, que foi retirado em uma cirurgia de sucesso feita em outubro passado, que extirpou 60% do órgão. Para garantir que o vírus não tome conta novamente do órgão, ela precisa tomar o remédio Peg-Interferon durante um ano. Do contrário, pode ter cirrose hepática, um novo tumor e até morrer. O Estado é obrigado por lei a fornecer o medicamento, mas o faz com uma morosidade que desrespeita a vida. “Depois da operação, entrei com o pedido do remédio. Fui informada de que só poderia recebê-lo um ano depois. Após muito stress, consegui em três meses. Mas sei de milhares de pessoas que não recebem e existem ações movidas contra o Estado por esse motivo.” Por causa do receio de sofrer represálias na liberação do remédio pelo qual batalhou tanto, ela prefere não revelar seu nome.

5 - o descaso com a comida
O cirurgião do aparelho digestivo Dan Waitzberg, 55 anos, dedica 15 horas do dia à medicina. Divide suas tarefas entre consultas, ensino, pesquisa e produção de artigos científicos. Chefe dos serviços de nutrição clínica do Hospital das Clínicas de São Paulo e de outros dois hospitais particulares, ele controla a dieta de 280 doentes internados. “Incomoda-me o descaso com a alimentação. Há doentes que ficam até três dias sem comer no hospital”, afirma. Isso eleva o stress e prejudica a recuperação. O desajuste aparece nas estatísticas. Entre 20% e 35% dos pacientes são internados com carências nutricionais, mas 50% ficam desnutridos dentro do hospital. Resta entender por que a desnutrição cresce sob o cuidado médico. Um dos motivos é a suspensão de exames e cirurgias em cima da hora. Outro problema é a inadequação da comida. Pesquisas mostram que até 40% das refeições voltam na bandeja. “Isso pode ser minimizado com uma conversa com o doente para tornar a comida mais aceitável”, diz Waitzberg. Ele aconselha os acompanhantes a ficarem atentos. “Perguntem ao nutricionista se há restrições, se podem trazer algo de casa e se há recomendação de vitaminas e fontes de proteína”, ensina.

6 - A relação fria com o paciente
As consultas da ginecologista e sexóloga Tânia das Graças Santana, em São Paulo, demoram mais de uma hora. Ela se empenha em dar a atenção que gostaria de ter dos seus médicos. “O que torna a saúde brasileira ainda mais debilitada é a falta de humanização no atendimento”, esclarece. “O acolhimento é ruim. Falta dedicação, carinho, boa vontade e paciência de médicos, enfermeiros e assistentes. O paciente é mal orientado e mandado de um lado para outro sem nenhum constrangimento”, afirma a médica. As pessoas, na opinião de Tânia, não devem aceitar passivamente esse tratamento. Se notarem pouco interesse do médico, em vez de ficar constrangidas devem fazer perguntas até entender o diagnóstico e o tratamento. E, se o médico comentar algo como “tenho visto muitos casos parecidos com o seu”, trate de falar dos seus sintomas e hábitos de vida. A tendência a generalizar aumenta as chances de diagnóstico incorreto.

7 - o drama da falta de dinheiro
O gasto mensal de um grande hospital público, como o Gaffrée e Guinle, no Rio de Janeiro, deveria ser de pelo menos R$ 1 milhão. Mas os recursos são menores. “Temos R$ 600 mil mensais”, revela o médico Carlos Alberto de Sá, chefe de clínica médica do hospital universitário. A eterna contenção de recursos teve dois grandes efeitos colaterais. Um atingiu os recursos humanos. “Nos últimos 20 anos perdemos mais de 50% dos funcionários”, revela Sá. O outro, a qualidade do atendimento. “Não há programas de modernização dos diagnósticos, o que nos leva a praticar uma medicina dos anos 60. Nunca mais pudemos recuperar a capacidade plena de funcionamento. Vivemos uma situação de crise permanente. Fazer economia não casa com medicina”, desabafa o especialista.

Colaborou Greice Rodrigues