SAÚDE |
O que os médicos
odeiam nos hospitais |
As carências, os pontos fracos e os
erros mais irritantes na opinião de
especialistas que lutam todos os
dias para salvar vidas nos centros
de atendimento médico do país |
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Por CELINA CÔRTES e MÔNICA
TARANTINO |
Ninguém conhece tão bem os
problemas camuflados na rotina dos hospitais quanto os próprios médicos. Na
luta para salvar vidas, eles muitas vezes se desdobram para superar esses
obstáculos. E no Brasil, como se sabe, eles nunca foram poucos na área da
saúde. ISTOÉ entrevistou alguns dos melhores especialistas do País em suas
áreas para descobrir o que mais os incomoda nos hospitais e o que pode ser
feito para melhorar o atendimento. Os problemas apontados são variados. Vão
da falta de treinamento nas unidades de pronto-socorro ao descaso com a
alimentação dos doentes. Situações raramente comentadas com os pacientes e
seus acompanhantes, mas que devem ser alvo de muita atenção.
1 - incompetência
no pronto-socorro
O atendimento no pronto-socorro determina a vida ou a morte, além
das seqüelas que um paciente poderá ter. “Não suporto ver que os
pronto-socorros brasileiros são nichos de médicos mal preparados e mal
remunerados. Lá fora eles têm equipes treinadas e bem pagas”, afirma o
cardiologista Sérgio Timerman, com a autoridade de quem trabalhou muitos
anos em pronto-socorros e lidera debates e organizações internacionais de
atendimento de urgência. No País são pouquíssimos os pronto-socorros nos
quais os profissionais recebem treinamento específico, que corresponde, na
aviação, aos exercícios de simulação feitos pelo piloto. O mais comum é ser
atendido por um médico recém-formado e despreparado, que dá plantão apenas
para complementar o orçamento. “Essa precariedade vai continuar se não
houver regulamentação para a formação desses profissionais. Os conselhos de
medicina e a Associação Médica Brasileira precisam olhar para esse
problema”, diz Timerman. Para se protegerem, as pessoas devem se informar
sobre os serviços ao seu redor.
2 - A restrição da
tecnologia
O desafio do cardiologista paraense Silas Galvão Filho, 52 anos, é
normalizar o ritmo do coração dos pacientes com arritmia. Seus principais
aliados são um procedimento chamado ablação por cateterismo e o implante de
aparelhos que regularizam os batimentos, os marcapassos e desfibriladores.
Muitas vezes, esses equipamentos são o último recurso para viver mais. Mas
isso não é suficiente para agilizar a liberação do tratamento pelos planos
de saúde ou pelo governo. A maioria dos planos não paga as próteses. No SUS,
a espera é de três a quatro meses. A fila começou depois de cortes nos
procedimentos mais caros. Pode ser tempo demais. “A coisa que eu mais odeio
é esse acesso difícil e demorado. Já vi pacientes terem morte súbita à
espera dos aparelhos”, diz Galvão Filho, responsável pela clínica de
Ritmologia Cardíaca do Hospital Beneficência Portuguesa. Os pacientes devem
se inscrever em diversos serviços, entrar com ação na Justiça e pedir aos
planos. Se for possível, o melhor é comprar. Os valores ficam entre R$ 15
mil e R$ 70 mil.
3 - a exigência de
produzir mais
O conflito entre a política de aumento da produtividade dos
médicos, que domina os hospitais, e o cumprimento das normas básicas de
segurança pode ter conseqüências sérias. É o que incomoda o infectologista
Renato Grinbaum, 42 anos, do Comitê de Controle de Infecção Hospitalar do
Estado de São Paulo. Na corrida para elevar o número de cirurgias e receber
os reembolsos correspondentes do SUS e dos planos de saúde, há hospitais
enchendo o seu espaço físico de forma exagerada para atender cada vez mais
gente. “Essa política interfere na segurança e no controle de infecções nos
hospitais”, diz Grinbaum. Como? A redução de espaços atinge áreas cruciais,
como aquelas reservadas aos procedimentos de esterilização de equipamentos.
Os locais onde o paciente descansa depois da cirurgia também estão cada vez
menores. Isso desobedece normas de vigilância sanitária e tem
desdobramentos. Um dos mais graves é a execução parcial dos processos de
esterilização. Como há princípios de desinfecção que não podem ser
prescindidos, a corda arrebenta do lado mais fraco: o aumento de
complicações pós-cirúrgicas e riscos de infecção hospitalar.
4 - o alto custo
dos remédios
A médica carioca Mara (nome fictício) sente na própria pele os
dramas de muitos pacientes para conseguir remédios de alto custo. Uma
transfusão de sangue há três décadas infectou-a com o vírus da hepatite C. A
doença evoluiu para um tumor no fígado, que foi retirado em uma cirurgia de
sucesso feita em outubro passado, que extirpou 60% do órgão. Para garantir
que o vírus não tome conta novamente do órgão, ela precisa tomar o remédio
Peg-Interferon durante um ano. Do contrário, pode ter cirrose hepática, um
novo tumor e até morrer. O Estado é obrigado por lei a fornecer o
medicamento, mas o faz com uma morosidade que desrespeita a vida. “Depois da
operação, entrei com o pedido do remédio. Fui informada de que só poderia
recebê-lo um ano depois. Após muito stress, consegui em três meses. Mas sei
de milhares de pessoas que não recebem e existem ações movidas contra o
Estado por esse motivo.” Por causa do receio de sofrer represálias na
liberação do remédio pelo qual batalhou tanto, ela prefere não revelar seu
nome.
5 - o descaso com a
comida
O cirurgião do aparelho digestivo Dan Waitzberg, 55 anos, dedica 15
horas do dia à medicina. Divide suas tarefas entre consultas, ensino,
pesquisa e produção de artigos científicos. Chefe dos serviços de nutrição
clínica do Hospital das Clínicas de São Paulo e de outros dois hospitais
particulares, ele controla a dieta de 280 doentes internados. “Incomoda-me o
descaso com a alimentação. Há doentes que ficam até três dias sem comer no
hospital”, afirma. Isso eleva o stress e prejudica a recuperação. O
desajuste aparece nas estatísticas. Entre 20% e 35% dos pacientes são
internados com carências nutricionais, mas 50% ficam desnutridos dentro do
hospital. Resta entender por que a desnutrição cresce sob o cuidado médico.
Um dos motivos é a suspensão de exames e cirurgias em cima da hora. Outro
problema é a inadequação da comida. Pesquisas mostram que até 40% das
refeições voltam na bandeja. “Isso pode ser minimizado com uma conversa com
o doente para tornar a comida mais aceitável”, diz Waitzberg. Ele aconselha
os acompanhantes a ficarem atentos. “Perguntem ao nutricionista se há
restrições, se podem trazer algo de casa e se há recomendação de vitaminas e
fontes de proteína”, ensina.
6 - A relação fria
com o paciente
As consultas da ginecologista e sexóloga Tânia das Graças Santana,
em São Paulo, demoram mais de uma hora. Ela se empenha em dar a atenção que
gostaria de ter dos seus médicos. “O que torna a saúde brasileira ainda mais
debilitada é a falta de humanização no atendimento”, esclarece. “O
acolhimento é ruim. Falta dedicação, carinho, boa vontade e paciência de
médicos, enfermeiros e assistentes. O paciente é mal orientado e mandado de
um lado para outro sem nenhum constrangimento”, afirma a médica. As pessoas,
na opinião de Tânia, não devem aceitar passivamente esse tratamento. Se
notarem pouco interesse do médico, em vez de ficar constrangidas devem fazer
perguntas até entender o diagnóstico e o tratamento. E, se o médico comentar
algo como “tenho visto muitos casos parecidos com o seu”, trate de falar dos
seus sintomas e hábitos de vida. A tendência a generalizar aumenta as
chances de diagnóstico incorreto.
7 - o drama da
falta de dinheiro
O gasto mensal de um grande hospital público, como o Gaffrée e
Guinle, no Rio de Janeiro, deveria ser de pelo menos R$ 1 milhão. Mas os
recursos são menores. “Temos R$ 600 mil mensais”, revela o médico Carlos
Alberto de Sá, chefe de clínica médica do hospital universitário. A eterna
contenção de recursos teve dois grandes efeitos colaterais. Um atingiu os
recursos humanos. “Nos últimos 20 anos perdemos mais de 50% dos
funcionários”, revela Sá. O outro, a qualidade do atendimento. “Não há
programas de modernização dos diagnósticos, o que nos leva a praticar uma
medicina dos anos 60. Nunca mais pudemos recuperar a capacidade plena de
funcionamento. Vivemos uma situação de crise permanente. Fazer economia não
casa com medicina”, desabafa o especialista.
Colaborou Greice Rodrigues |