Ministro Saraiva Felipe
Entrevista concedida ao CFM - Conselho Federal de Medicina
Financiamento do SUS é o grande desafio
O novo ministro da Saúde, Saraiva Felipe, considera o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) um dos maiores desafios de sua gestão, por se tratar de uma área onde as necessidades são crescentes e os recursos não conseguem acompanhar a demanda. Nesta entrevista exclusiva ao MEDICINA, o ministro fala, entre outros assuntos, da necessidade de regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 e das gestões que está fazendo em relação à remuneração de médicos e hospitais.
MEDICINA - Quais são
suas principais metas à frente do Ministério da Saúde?
Ministro Saraiva Felipe -
Sempre reforço que esta é uma gestão de continuidade. Por isso, vamos trabalhar
para aperfeiçoar os programas que vêm dando bons resultados e buscar novas
alternativas para as áreas que ainda enfrentam problem as, como, por exemplo, a
assistência farmacêutica, a atenção básica e o acesso à média complexidade.
Dentre as estratégias que serão reforçadas e ampliadas estão
o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência - Samu (que
envia ambulâncias e UTIs móveis para atender pedidos de socorro feitos pelo
telefone 192), o Programa Farmácia Popular (de fornecimento de
medicamentos a preços de custo), o Brasil Sorridente (de atendimento
odontológico especializado e básico) e as políticas de planejamento familiar.
Também vamos formular ações específicas para a saúde da terceira idade,
população que tem crescido no país graças ao aumento da expectativa de vida. E a
rede do SUS tem de estar preparada para atender esse público nas suas
especificidades.
MEDICINA - Qual a
importância e como o Ministério da Saúde pode contribuir para a regulamentação
da Emenda Constitucional nº 29, atualmente em tramitação no Congresso, que trata
do financiamento do setor?
Ministro Saraiva Felipe -
O financiamento do SUS é hoje um grande desafio. Por se tratar de
uma área onde as necessidades são crescentes, os recursos, muitas vezes, não
conseguem acompanhar a demanda. O caráter universal do
sistema brasileiro torna as despesas ainda mais altas. Daí a importância
de se criarem metas para melhor utilização dos recursos disponíveis, priorizando
as áreas de maior impacto para a população. Ao estabelecer
compromissos de investimentos da União, estados e municípios, a Emenda
Constitucional 29, aprovada em 2000, é um instrumento fundamental à garantia de
recursos para o financiamento do setor saúde. No entanto, a falta de uma
regulamentação nacional provoca interpretações variadas acerca da aplicação das
responsabilidades previstas pela emenda. A regulamentação vai permitir o
cumprimento da Emenda 29, porque será estabelecido um marco legal claro para a
aplicação das obrigações previstas, o que facilitará a fiscalização. A
lei complementar definirá, com clareza, o que pode ser considerado gasto com
saúde, evitando, assim, o direcionamento de recursos para outras áreas. Para
acelerar a aprovação desse projeto de lei, o Ministério da Saúde vai trabalhar,
ao lado dos conselhos e gestores de saúde, para fazer uma frente de apoio à
regulamentação da Emenda 29. E acredito que os parlamentares vão agir com
serenidade e a favor da aprovação desse projeto, essencial para o SUS.
MEDICINA - A
precariedade e as diversas formas de contratação de médicos e outros
profissionais da área da saúde pelo SUS, a exemplo do Programa Saúde da Família,
vêm contribuindo para dificultar a efetivação do sistema. Qual será a atuação do
Ministério da Saúde em relação à definição do Plano de Cargos, Carreiras e
Salários no SUS?
Ministro Saraiva Felipe -
A precariedade do trabalho no SUS é uma questão que tem
preocupado muito os gestores do sistema. Trata-se de um problema que atinge não
só o Ministério da Saúde, mas também as secretarias de saúde, as instituições
estaduais e os estabelecimentos sob a responsabilidade dos municípios.
Atualmente, são 2,2 milhões de empregos no SUS. Cerca de 30% desses
trabalhadores estão sem garantias sociais e trabalhistas mínimas. Boa parte
deles atua no Programa Saúde da Família. A situação dos agentes comunitários de
saúde é a que mais preocupa. Dos 200 mil agentes que hoje atuam no país, 70%
trabalham em situação precária. A resposta do Ministério da Saúde a essa
situação tem sido a adoção de políticas específicas para combater a precarização
das relações de trabalho. Nessa busca, gestores das três esferas de governo
(federal, estadual e municipal) e trabalhadores de saúde formaram o Comitê
Nacional de Desprecarização do Trabalho no SUS. O objetivo é formular propostas
conjuntas para melhorar as condições de trabalho na rede pública de saúde. Como
a situação dos agentes comunitários de saúde é a que inspira maior cuidado, o
Ministério da Saúde assumiu como prioridade a desprecarização das relações de
trabalho desses profissionais. Estamos promovendo, em parceria com o Conselho
Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional dos Secretários
Municipais de Saúde (Conasems), ações para conscientizar os municípios a
regularizarem a contratação dos agentes comunitários de saúde no SUS, garantindo
seus direitos sociais e trabalhistas. Estamos discutindo, ainda, uma proposta de
incentivo financeiro diferenciado para os municípios que promoverem a inserção
definitiva dos agentes comunitários de saúde, por concurso ou processo seletivo
público. O ministério também acompanha com atenção as discussões sobre a emenda
constitucional para fixar regras nacionais uniformes que assegurem aos agentes
de saúde vínculo de trabalho formal e regime jurídico adequado à natureza de
suas atividades.
MEDICINA - Que
medidas serão tomadas para que a remuneração do médico e dos hospitais seja
justa?
Ministro Saraiva Felipe -
Este governo tem procurado corrigir a defasagem que sempre
existiu nos repasses para o SUS. A partir de 2003, os valores das tabelas já
foram reajustados duas vezes. Mais de 400 procedimentos tiveram aumento. Muitos
deles, da área de média complexidade, estavam sem reajuste desde 1994, chegando
a acumular um déficit superior a 110% – considerando a inflação setorial medida
oficialmente. Os aumentos alcançaram os procedimentos ambulatoriais e
internações (em 2003, o aporte foi de R$ 330,48 milhões; em 2004, de R$ 505,36
milhões), o serviço de hemodiálise (que teve aumento de 10,25%, representando um
impacto de R$ 91,7 milhões/ano) e as consultas especializadas nos hospitais
públicos (aumento de 196%, com impacto de R$ 422,5 milhões/ano).
Nos últimos anos, as correções dos valores das internações e procedimentos ambulatoriais priorizaram mais o impacto nos serviços hospitalares. Os serviços profissionais e de diagnose foram ajustados numa escala menor. É importante destacar que a defasagem das tabelas vem de longa data. E, devido às limitações orçamentárias e à freqüência elevada desses procedimentos, a recomposição dos valores fica prejudicada. Diante dessas dificuldades, precisamos estabelecer prioridades de ação para atender às políticas do Ministério da Saúde e, na medida do possível, aos pleitos dos pro fissionais. O Ministério da Saúde também tem buscado a inserção definitiva da rede hospitalar brasileira no sistema público de saúde. Duas ações concretas em direção à reforma da atenção hospitalar, iniciadas a partir de 2004, são a Política Nacional para os Hospitais de Pequeno Porte e o Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino. A principal mudança promovida com essas iniciativas ocorre na forma de financiamento dos hospitais. Eles deixam de receber recursos financeiros a cada serviço prestado e passam a contar com um orçamento global. A grande vantagem é que, além de contar com mais recursos, os hospitais podem melhor aplicá-los, de acordo com suas necessidades. Como contrapartida, as instituições devem cumprir metas qualitativas e quantitativas de atendimento pactuadas com os gestores de saúde. Até o momento, 45 hospitais universitários já estão contratualizado s. Eles recebem, em conjunto, um adicional de R$ 316,9 milhões por ano. Outros 154 hospitais de pequeno porte já aderiram à política nos estados do Tocantins, Ceará e Paraná. Ao todo, estão previstos R$ 125 milhões para beneficiar mais 1,4 mil hospitais de pequeno porte em todo o país.
MEDICINA – Qual é sua
predisposição em trabalhar com as entidades médicas no sentido de valorizar os
fundamentos éticos, técnico-científicos e legais defendidos por elas e tão
divulgados, hoje em dia, por toda a imprensa?
Ministro Saraiva Felipe -
A nossa disposição em manter o canal de diálogo aberto com as
entidades medicas é total. Esse trabalho conjunto é muito importante, uma vez
que tanto o Ministério da Saúde quanto as entidades médicas estão comprometidos
com a qualidade do serviço oferecido pelo Sistema Único de Saúde.
MEDICINA - Que papel
o Ministério da Saúde representa no âmbito da regulação das profissões da área?
Ministro Saraiva Felipe -
O Ministério da Saúde tem o papel constitucional de
ordenar o processo de regulação das profissões da área. Esse trabalho deve ser
feito buscando, sempre, a parceria das entidades profissionais e acadêmicas do
setor.
MEDICINA - Qual é sua
opinião acerca da regulamentação da profissão de médico, considerando que é a
única ainda não regulamentada por lei?
Ministro Saraiva Felipe -
A regulamentação das profissões da saúde, não
somente a do médico, é assunto da maior importância para o gestor do SUS.
Afinal, o trabalho desses profissionais se reflete diretamente na qualidade de
vida da população. Temos que considerar, também, o fato de que boa parte do
trabalho em saúde é realizado por equipes multiprofissionais. Isso torna ainda
maior a necessidade de que os atos profissionais sejam regulamentados em lei.
MEDICINA - Como o
senhor entende o papel dos conselhos da área da saúde na normatização,
regulamentação e fiscalização do exercício profissional?
Ministro Saraiva Felipe -
A constituição da Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde, com
ampla participação dos conselhos profissionais, mostra a disposição do
Ministério da Saúde para discutir e dialogar com os conselhos nas questões que
envolvem as políticas de regulação do trabalho e do exercício profissional.
Reconhecemos o papel essencial dessas instituições como representantes legítimos
dos trabalhadores da saúde.
MEDICINA - Qual é a
importância da participação de médicos no Conselho Nacional de Saúde?
Ministro Saraiva Felipe -
As decisões do Conselho Nacional de Saúde (CNS) devem refletir as
reais necessidades da sociedade brasileira. Por isso, os usuários, trabalhadores
de saúde, gestores e prestadores de serviço devem estar bem representados no CNS.
A participação da classe médica é essencial, pelo profundo conhecimento que
esses profissionais carregam sobre saúde pública e demandas específicas da área.
Então, como o Conselho Nacional de Saúde atua na formalização de estratégias,
fiscalização e deliberação de políticas de saúde, dificilmente se poderia pensar
na ausência de representantes da classe médica nesse fórum.
MEDICINA - As
chamadas “Casas de Parto” foram criadas por portaria do Ministério da Saúde. O
senhor pretende reavaliá-la?
Ministro Saraiva Felipe -
Os centros de parto normal, popularmente conhecidos como “Casas
de Parto”, foram criados em 1999. Eles se destinam ao atendimento humanizado à
mulher, exclusivamente nos casos de parto normal, sem complicações. Os centros
de parto normal atuam de maneira complementar às unidades de saúde existentes e
atendem às recomendações da Organização Mundial da Saúde e da Federação
Internacional de Ginecologia e Obstetrícia.
MEDICINA - Que novas
diretrizes serão tomadas na área da saúde da mulher e da criança?
Ministro Saraiva Felipe -
As mulheres e crianças são prioridades do Ministério da Saúde.
Vamos aprimorar e expandir os programas que já apresentam bons resultados e, ao
mesmo tempo, enfrentar novos desafios. Com o Pacto Nacional pela Redução da
Mortalidade Materna e Neonatal, estamos trabalhando ao lado dos estados,
municípios e sociedade civil para reduzir em 15%, até o final de 2006, a
mortalidade de mulheres e bebês com até 28 dias de vida. O governo federal vem
desenvolvendo uma ampla política de garantia dos direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres. Esta política amplia a oferta gratuita dos métodos
anticoncepcionais reversíveis e cirúrgicos (laqueadura e vasectomia), introduz
técnicas de reprodução humana assistida no SUS e qualifica a atenção à gestante
e ao recém-nascido, expandindo o Programa de Humanização do Pré-Natal, Parto e
Nascimento. Em 2004, foram 1,62 milhão de partos normais assistidos e 617,6 mil
partos cirúrgicos (cesáreas) realizados no SUS. A Política Nacional de Controle
e Tratamento do Câncer de Mama e de Colo de Útero, elaborada por este ministério
com a participação do Inca, está em processo de implementação e beneficiará
amplamente as mulheres brasileiras. Um instrumento fundamental para acompanhar a
saúde das nossas crianças é a Caderneta da Criança. A partir deste ano, toda
criança nascida no Brasil, seja em mat e rnidade pública ou privada, passou a
ter o direito à nova Caderneta da Criança – o antigo Cartão da Criança, que foi
atualizado e está mais completo. A Caderneta da Criança acompanha a saúde da
pessoa até os 10 anos de idade. São 3,5 milhões de cadernetas garantidas para
todos os bebês nascidos a partir de janeiro de 2005. Estamos também incentivando
a ampliação da rede de bancos de leite mat e rno do país. Atualmente, a rede
nacional de bancos de leite humano tem 186 unidades nos 26 estados brasileiros e
Distrito Federal. Nossa meta é criar mais nove bancos até o final do ano. Outra
ação de grande impacto na redução da mortali- dade neonatal é a produção, em
parceria com o Instituto Butantan, do primeiro surfactante nacional, medicamento
que pode reduzir em até 40% o número de mortes de recém-nascidos prematuros por
doença pulmonar de membrana hialiana. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
também está desenvolvendo um atendimento diferenciado às urgências pediátricas e
obstétricas.
MEDICINA - Que lições o Ministério da Saúde pode tirar de situações como a do
Rio de Janeiro, que levaram à intervenção?
Ministro Saraiva Felipe -
Em primeiro lugar, devemos repensar as abordagens tradicionais de
intervenção em regiões metropolitanas. O caso do Rio de Janeiro demonstrou que
soluções para reestruturar a atenção à saúde devem contemplar, necessariamente,
o conjunto de municípios que compõem a região metropolitana daquela cidade. Num
segundo aspecto, está a necessidade de que toda e qualquer estratégia de
intervenção sobre realidades sanitárias precisa contar com o trabalho integrado
dos três níveis de governo (União, estados e municípios). Esse pacto de gestão
permitirá a criação de estratégias adequadas à superação dos problemas.
MEDICINA - Os
serviços de assistência psiquiátrica ficarão restritos aos Centros de Atenção
Psicossocial (Caps) ou o governo procurará instituir uma rede de serviços capaz
de atender às necessidades dos pacientes?
Ministro Saraiva Felipe -
As diretrizes da política nacional de saúde mental são de reorientação do modelo
assistencial – ainda centrado nos hospitais psiquiátricos especializados – por
meio da criação de uma rede de atenção de base territorial e comunitária em
saúde mental. O objetivo é garantir ao paciente – que não necessita de cuidados
em regime de internação – as condições para que volte ao convívio familiar sem
abandonar o tratamento. A rede brasileira extra-hospitalar tem como principal
referência os diversos tipos de Cent ros de Atenção Psicossocial. Também compõem
a rede os núcleos de atenção integral em Saúde da Família, os serviços
hospitalares de referência para álcool e drogas, as residências terapêuticas, o
Programa De Volta para Casa e os projetos de inclusão social através de geração
de renda e trabalho. Hoje, existem 650 Centros de Atenção Psicossocial. Eles
proporcionam um atendimento regular, sem que o paciente precise ficar internado.
Além de cuidados clínicos, as pessoas assistidas nos Caps têm acesso a trabalho,
lazer e retirada de documentos. Os serviços residenciais terapêuticos têm
possibilitado a saída de pacientes dos hospitais psiquiátricos após longos
períodos de internação, mesmo aqueles que já haviam perdido suas referências
familiar e social. Atualmente, 1.624 pessoas moram em 294 residências
terapêuticas. Nelas, os pacientes dividem uma residência, alugada com os
recursos públicos, ou vivem sob a tutela de suas famílias. Recebem cuidados de
saúde mental na rede existente no município e são estimuladas a participar de
atividades sociais e se inserir no mercado pro fissional. O Programa De Volta
para Casa, instituído em 2003, ajuda na ressocialização de pacientes que tenham
passado longos períodos internados. Atualmente, 1.113 pessoas recebem o
auxílio-reabilitação no valor d R$ 240,00 mensais. A atenção hospitalar ao
portador de transtorno mental também passa por mu danças. Os hospitais gerais,
por exemplo, são convocados a se habilitar na atenção aos usuários de álcool e
outras drogas para dar retaguarda ao trabalho feito nos Caps. As equipes de
Saúde da Família, que estão cada vez mais qualificadas, agora também terão o
apoio de equipes de saúde mental.