Tão raro, a literatura
costuma recorrer a dramas pessoais para mostrar que mesmo diante de
grandes problemas, é possível vislumbrar novos horizontes. Em 1982, o
escritor Marcelo Rubens Paiva foi catapultado à fama depois de lançar
“Feliz Ano Velho”, autobiografia motivada pelo acidente que sofreu em
Campinas, em 1979, e que o deixou paralítico. Dois anos antes, o irmão do
compositor Toquinho, João Carlos Pecci, já havia lançado “Minha Profissão
é Andar” —considerado o pioneiro do gênero no Brasil— em que narrava, de
forma pungente, a sua luta pela reconquista do movimento depois de um
acidente de automóvel que o deixou paraplégico.
A alagoana Rafaela de Oliveira Barros tem 15 anos e nunca leu nenhum dos
dois autores.
Mas tem algo em comum com ambos. Internada na Unidade de Terapia
Intensiva Pediátrica da Unidade de Emergência Armando Lages há quase 4
anos, ela usou a mesma ferramenta de Paiva e Pecci para narrar os
momentos marcantes vividos na UTI.
Portadora de uma doença degenerativa muscular e vivendo num ambiente do
alto nível de estresse — em que a convivência diária com a morte, perdas,
separações e situações de emergência é constante—, Rafaela fala dos seus
medos, ansiedades, tristezas, alegrias e esperanças. “Agora estou com
menos medo (de morrer) porque estou vendo que não é nada disso, já posso
ficar fora do respirador sem ter parada”, relata em “Vida em UTI —
Esperança de uma menina”, que deverá ser lançado no próximo mês, num
esforço que envolveu toda a equipe da unidade de emergência.
Por estar tanto tempo na UTI, a menina conquistou o coração de
enfermeiras, médicos e psicólogos da unidade. Extremamente vaidosa —só se
deixou fotografar depois de tomar banho e se maquiar—, revela–se cuidadosa
com sua aparência.
Como não pode movimentar parte do corpo, a menina ganhou um espelho para,
através dele, acompanhar o movimento da UTI. Prefere, no entanto fazer uso
dele como qualquer outra pessoa. “Teve uma fase em que eu estava
engordando muito, aí pedi para a enfermeira e a nutricionista acharem uma
maneira para eu não engordar tanto”, conta.
O livro —que está na fase de revisão— é resultado de seus depoimentos
escritos e de material colhido através de trabalhos projetivos, usados
como recurso facilitador da expressão de sentimentos. Através deles,
Rafaela faz planos sobre o futuro. “Rafaela é uma adolescente que revela
uma identidade própria e marcante, uma capacidade intelectual
privilegiada, tendo como atributo importante recursos internos que
permitem desenvolver a capacidade para tolerar frustrações e
adaptabilidade”, revela a psicóloga Silvana Tenório Wanderley,
organizadora do livro.
“Vida em UTI” é antes de tudo um depoimento sensível de alguém que mesmo
convivendo num ambiente tenso, faz planos para o futuro. “Tenho
esperança de poder trabalhar como fisioterapeuta e ajudar a minha família”,
diz. “Mas também penso como minha família vai pagar minha faculdade, com
qual dinheiro?”, questiona.
Por viver num ambiente de alto nível de estresse, Rafaela é acompanhada
pela psicóloga Silvana Tenório, que tenta encontrar mecanismos para
minimizar esse clima. “Hoje, ela já faz bijuterias e vende para os
funcionários da UTI”, conta.
Completamente desprovida de sentimentos, a literatura médica define as
miopatias congênitas como uma doença de natureza hereditária e lentamente
progressiva que costuma atingir o indivíduo ainda na infância. O tipo que
afetou Rafaela — a Miopatia Central Core — se caracteriza pela presença de
“cores” (lesões localizadas no interior da fibra muscular, onde ocorre a
ausência de mitocôndrias). “É a forma mais comum das miopatias
congênitas”, ressalta o diretor da pediatria infantil da Unidade de
Emergência, Sérgio Luiz Lira Costa.