Temporão quer incentivar a fabricação de materiais médico-hospitalares no Brasil

Fonte: HOSPITALAR / VALOR ECONÔMICO

Em entrevista publicada no jornal Valor Econômico de hoje (07), ministro da Saúde diz já ter setores-alvo da sua política de incentivos e pretende apresentar em até três meses seu esboço ao presidente

O Brasil terá, até o fim deste ano, uma política para incentivar a fabricação, no país, de materiais e equipamentos médico-hospitalares, hoje importados pelo governo, informou o ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Ele já tem setores-alvo da sua política de incentivos e pretende apresentar em até três meses seu esboço ao presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado de propostas de melhoria no atendimento à população e aperfeiçoamento das ações de prevenção no setor.

Temporão quer concentrar os financiamentos do BNDES ao setor em uma lista de produtos com grande impacto no atendimento à população e no orçamento do ministério. Dessa lista constam, por sugestão do ministro, marcapassos, remédios genéricos, vacinas e soros e órteses e próteses, cujos similares nacionais teriam preferência nas compras do governo.

Os remédios comprados com o orçamento público formam o mercado mais atrativo: R$ 4,7 bilhões. Vacinas e soros consumirão R$ 780 milhões, neste ano. A importação de marcapassos somou US$ 134 milhões no ano passado, e a de órteses e próteses, US$ 84,9 milhões.

A preocupação com a indústria acompanha o ministro desde a universidade, onde estudou as cadeias produtivas do setor farmacêutico e o ramo de vacinas. Temporão diz ver um "campo grande de intervenção do Estado" nessa área e lembra que trabalhou três anos em uma fábrica de vacinas, o Instituto Vital Brasil. Coordenou, com Carlos Gadelha, estudos para influir nas políticas de governo para os setores de vacinas, medicamentos, reagentes para diagnósticos, equipamentos médico-hospitalares, material cirúrgico e hemoderivados. Chegou a inspirar um seminário sobre o tema, no BNDES na gestão de Carlos Lessa. Ouviu, entusiasmado, que o novo presidente, Luciano Coutinho, apóia planos para o setor.

Na quinta-feira da semana passada, Temporão recebeu o Valor, momento em que concluía a medida que, sob críticas do setor farmacêutico, licenciou compulsoriamente o medicamento anti-aids Efavirenz, da Merck Sharp & Dohme, que será comprado, a baixo preço, de laboratórios indianos.

Acostumado à polêmica, ele evitou falar sobre aborto, alegando respeito ao Papa Bento XVI, em visita ao Brasil. Mas não fugiu à polêmica com o cantor Zeca Pagodinho, que criticou a intenção do governo de restringir a propaganda de bebidas de menor teor alcoólico. "Sou fã do Zeca Pagodinho, mas como propagandista de indústria ele é patético.". A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O senhor tem falado em criar um complexo industrial de saúde no Brasil. Qual é o seu projeto?
José Gomes Temporão: Hoje, 50% do mercado de máquinas e equipamentos hospitalares e 25% do mercado farmacêutico são públicos. São R$ 22 bilhões ou US$ 10 bilhões por ano. A balança setorial comercial da saúde é negativa em US$ 5 bilhões, dos quais US$ 2 bilhões são fármacos e medicamentos. Esse quadro caracteriza uma vulnerabilidade da política social brasileira. A indústria de base de farmoquímica brasileira foi destruída na década de 80. O Brasil já teve uma balança setorial negativa de US$ 600 milhões e hoje ela está em US$ 5 bilhões.

Valor: Não é mais prático e barato importar produtos de saúde?
Temporão: Em algumas áreas, sim. O Brasil não tem capacidade de ser auto-suficiente na área de ressonância magnética. Mas é razoável o Brasil importar 25 mil marcapassos por ano? É uma tecnologia de fácil acesso, não vejo sentido criar empregos lá fora. A única exceção à essa vulnerabilidade é a indústria de vacinas. O Brasil foi o único país na América Latina a criar um Programa Nacional de Auto-suficiência de Imunobiológicos, que sobreviveu aos governos e investiu US$ 200 milhões em infra-estrutura. É o responsável pelo que temos hoje em Bio-Manguinhos e no Instituto Butantan.

Valor: Isso seria estendido a todo o setor de saúde?
Temporão: Não temos condições tecnológicas ou de capacidade de pesquisa e desenvolvimento em todas as áreas, mas precisamos definir janelas de oportunidades. Por exemplo: o Brasil exporta equipamentos na área de material odontológico, praticamente equilibra a balança entre importação e exportação. O que pode ser feito na área de órteses e próteses, que importamos tudo? Na área de stents, na área de material de consumo, agulhas, seringas, bisturis elétrico, tem um mundo. As indústrias da saúde empregam, diretamente, 300 mil pessoas, no Brasil. Com os 70 mil estabelecimentos de saúde, são 2,5 milhões de empregos de alta qualidade. Temos de valorizar essa dimensão econômica. Em 20 anos, teremos 30 milhões de brasileiros com mais de 60 anos de idade, mais doenças crônicas, mais gastos. Vou precisar de mais máquinas, mais tecnologias, mais medicamentos, mais médicos, mais enfermeiros, mais fisioterapeutas. E mais orçamento.

Valor: Por que com todo o mercado existente, os empresários não investem mais neste setor?
Temporão: O BNDES é fundamental. Se integrar, de um lado, a capacidade de compra de um Estado, dirigido a um conjunto de produtos estratégicos, e vincular esse conjunto à uma política de pesquisa e de produção, com uma base de financiamento, você alavanca uma política integrada. Ninguém se interessa em pesquisar doenças órfãs, como tuberculose, malária, leishimaniose, hanseníase porque os países ricos não têm essas doenças. Outro exemplo de foco: o governo brasileiro vai gastar R$ 4,7 bilhões em medicamentos, 12% do orçamento do Ministério da Saúde. Tenho que definir, nesse conjunto, quais os medicamentos de maior relevância e maior impacto do ponto de vista epidemiológico e aqueles que, por seu custo, comprometem muito o orçamento do ministério para atender um número pequeno de pessoas.

Valor: O senhor tem um projeto para esse setor? Não é coisa para um mandato...
Temporão: Estou preparando um grande projeto voltado para o setor saúde.

Valor: É o tal PAC para a saúde?
Temporão: Entre aspas. Teremos que usar outro nome. PAC é o PAC, tem dimensão econômica. O presidente me encomendou, estou pensando em uma proposta ousada. Tem que ter impacto nas políticas de promoção à saúde, nas políticas de atenção e acesso dos cidadãos ao sistema de saúde e na dimensão econômica.

Valor: E quanto ao prazo? O que fazer ainda neste mandato?
Temporão: Eu entendo que seja possível no prazo deste governo, de quatro anos, ter resultados objetivos na ampliação da capacidade produtiva interna, na internalização de algumas cadeias produtivas e alguns produtos.

Valor: Poderia dar exemplos?
Temporão: Órteses e próteses, principalmente ortopédicas, um campo importante. Outro é a produção de genéricos, medicamentos de saúde pública, vacinas, marcapassos. Temos que ter foco e escala. Não adianta abrir muito que não vamos ter capacidade. Onde eu tenho mais capacidade produtiva e onde tenho, em tese, empresas privadas interessadas no mercado?

Valor: Nesses setores citados pelo senhor existem empresas interessadas em atuar?
Temporão: O que falta é calçar a capacidade de compra do Estado com a linha de financiamento. Poderia, a partir daí, estabelecer uma nova realidade econômica.

Valor: O que seria "calçar" essa capacidade de investimento?
Temporão: O BNDES tem linhas de financiamento para as empresas adquirirem máquinas, capital de giro. Hoje existe um balcão, o cidadão que chegar com um projeto razoável, tem aprovação do banco. O que estou propondo é definir foco, um conjunto de produtos e estratégias onde todos trabalhariam.

Valor: Qual o critério da escolha desses setores?
Temporão: Necessidade epidemiológica, doenças prevalentes e gasto.

Valor: Por que a iniciativa privada tem de esperar o financiamento público para fazer investimentos?
Temporão: O dinheiro do BNDES não é fundo perdido, é um empréstimo. Tem garantias, spread e taxas. Só que, nos bancos privados, os juros são cinco vezes maiores.

Valor: O senhor falou com o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, sobre isso?
Temporão: O Luciano trabalhou conosco em projetos de pesquisa nessa área, conheço ele de longa data. Nossa comunicação, nesse campo, é como se ele estivesse tocando um violino e eu, acompanhando com uma flauta doce.

Valor: O senhor já conversou com as empresas?
Temporão: Tem muita coisa mapeada. No seminário feito em 2003, a Abiquif e Abimo, associações do setor químico e da área de equipamentos, mostraram ter projetos e propostas que não foram atendidas porque nunca houve uma posição do governo com políticas voltadas para o setor.

Valor: O que esse "foco" trará? A balança comercial da saúde é negativa em US$ 5 bilhões e isso mostra a vulnerabilidade da política social brasileira. "
Temporão: Vou financiar dez, quinze insumos. Não posso abrir para uma demanda universal, porque não resolveria nada.

Valor: Um empresário não conseguiria financiar no BNDES um projeto para fabricar marcapassos?
Temporão: Ele não teria garantias de que esse marcapasso chegará ao mercado e será comprado por alguém.

Valor: Os financiamentos serão vinculados à política de compras governamentais?
Temporão: Exatamente, usar a capacidade de compra do Estado como indução do desenvolvimento. Capacidade de compra do Estado, política de indústria e comércio, de ciência e tecnologia, o banco como financiador e o setor privado como espaço de produção.

Valor: Serão incluídos todos os medicamentos genéricos?
Temporão: Não. Apenas os da relação de medicamentos essenciais do Ministério da Saúde, cento e poucos medicamentos.

Valor: Existe um prazo para concluir esse projeto?
Temporão: Vai depender um pouco da minha velocidade. Estou com cinco semanas, acabei de montar a equipe. Mas eu acho que em três meses apresento ao presidente uma primeira versão para que ele possa analisar e me dar a diretriz. Minha expectativa, como ministro, é que 2008 seja o ano da saúde.

Valor: Como ministro, o senhor levantou uma grande polêmica, sobre o aborto...
Temporão: Não vou falar sobre isso na semana da visita do Papa. Não há a menor hipótese. Na semana do Papa, o ministro sumiu. O líder da maior religião do Brasil vem ao país seria até uma indelicadeza, podem dizer que o ministro se recusou terminantemente a responder.

Valor: Vamos falar então sobre a regulamentação da emenda 29, que impediria desvio de verbas da Saúde. O governo quer permitir que Estados tenham maior liberdade para usar verbas do setor, quer criar uma DRE (Desvinculação dos Recursos Estaduais)...
Temporão: Não passa, os governadores de São Paulo, José Serra (PSDB), e do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), são contrários à DRE. A única possibilidade de economia dos recursos dos estados caso seja realmente criada a DRE seria com a saúde. E é exatamente na Saúde onde 20 dos 27 Estados não cumprem a emenda 29. Do ponto de vista do orçamento setorial, seria um desastre. Eles disseram para mim que eram contrários à essa proposta. Já a briga por recursos para a saúde vai continuar até o final do meu mandato.

Valor: Há previsão orçamentária para atender seus planos na saúde?
Temporão: Eu diria que o orçamento é insuficiente.

Valor: O senhor até propôs a redirecionamento do imposto sobre o fumo...
Temporão: Essa é outra discussão, que pode estar no projeto mais amplo. Vários países usam. Se tenho uma indústria que causa danos à saúde, é razoável imaginar que ela contribua para um fundo de proteção e promoção à saúde.

Valor: Entrar no PAC da Saúde ou é outro debate?
Temporão: Depende de uma conversa com a área econômica. Sem a Fazenda e sem o Planejamento, nada anda. Vou conversar com o ministro (da Fazenda, Guido) Mantega nesta semana. Já conversei com o Paulo Bernardo (ministro do Planejamento) sobre a emenda 29. É uma discussão de governo, que tem de passar pelo crivo do Conselho Político e uma decisão do presidente; está em nível ainda muito preliminar.

Valor: Quais as restrições que a Anvisa quer adotar para publicidade de bebida?
Temporão: Proximamente o presidente vai assinar um decreto estabelecendo a política nacional de bebidas alcoólicas, que envolve ações educativas, legislativas, de informação. Um estudo feito em 30 países sobre o impacto de ações de governo sobre o álcool mostra que as medidas educativas têm eficácia muito menor do que medidas restritivas. Colocar no rótulo de bebidas ou nas propagandas uma mensagem de promoção de saúde tem impacto muito menor do que a punição a quem dirige alcoolizado ou uma legislação que restrinja a venda de bebidas em beira de estrada ou próximo a hospitais e escolas.

Valor: O governo fará mais ações restritivas?
Temporão: A política é mista, pode ter tanto ações educativas quanto ações restritivas.
 
Valor: Até coluna social diz que, por causa dessa questão da propaganda de bebidas até o Zeca Pagodinho brigou com o senhor..
Temporão: Vou falar sobre o Zé Pagodinho, mas não é agora. Vou falar um dia. Essa questão da propaganda de cerveja é outra história. O colegiado da Anvisa deve se reunir proximamente para discutir a restrição de horário e a restrição de conteúdo. Essa é uma das medidas da política.
 
Valor: Há quem diga que o Congresso e não a Anvisa, deveria regulamentar isso.
Temporão: É competência da Anvisa. Se de um lado o papel da indústria é vender, do outro lado o papel do Estado é proteger a saúde pública. A propaganda atinge hoje, indiscriminadamente, todas as faixas etárias em todos os horários, com estratégias de comunicação complicadas. A última propaganda de uma das marcas é um videogame voltado para adolescentes. Isso é inadmissível.

Valor: O que é aceitável?
Temporão: O ministro espera que a indústria enfrente essa discussão de maneira razoável. Não é razoável ler na imprensa que o objetivo da propaganda não é aumentar o consumo; seria um fenômeno do capitalismo mundial. O álcool é um problema de saúde pública gravíssimo: há uma epidemia de violência no Brasil e o álcool está fortemente associado. Os números estão aí: 35 mil mortos no trânsito ao ano. Agressões interpessoais, doenças hepáticas, cardiológicas, neurológicas, violência doméstica. A droga mais consumida é o álcool, é legal. Ninguém fala em proibição, é redução de danos.

Valor: O senhor já está quase falando do Zeca Pagodinho.
Temporão: Tenho todos os discos do Zeca Pagodinho. Sou fã, tenho um filho músico que é fã dele. Mas como propagandista de indústria ele é patético.

Valor: Por quê?
Temporão: Se ele tem uma visão do que é beber bem, que passe para os filhos dele, na casa dele. Mas entrar na minha casa e dizer o que é beber bem para os meus filhos e netos é inadmissível. Preferia que ele continuasse cantando e sumisse da telinha vendendo cerveja.