Sentença de morte na saúde do Rio

Carla Rocha e Luiz Ernesto Magalhães O GLOBO

A vida de Yasmin está por um fio de respirador. Com um 1 ano e 10 meses, a menina, que tem distrofia muscular, vê a infância passar da cama de sua casa em Santíssimo. A cena, que não precisa de adjetivos para ser mais triste, pode ilustrar mais uma página da trágica história de sofrimento dos doentes no Rio, se a prefeitura vencer a batalha com a família da criança na Justiça. A Secretaria municipal de Saúde quer de volta o respirador que mantém a ligação de Yasmin com o mundo. Levantamento da Defensoria Pública, feito a pedido do GLOBO, revela que 70% das ações judiciais do Núcleo de Fazenda Pública são para obrigar estado e município a atenderem doentes crônicos que precisam ir à Justiça até para entrar num CTI.

A briga judicial que envolve o futuro de Yasmin é para saber se a responsabilidade por ela é da União, do estado ou do município. Com indicação para continuar o tratamento em casa desde o início deste ano, a criança só conseguiu sair do hospital em novembro, graças a um mandado de busca e apreensão que ameaçava de prisão o secretário municipal de Saúde, Ronaldo Cezar Coelho, caso não fornecesse o respirador em 45 minutos. Na semana passada, a prefeitura chegou a cassar a liminar em segunda instância, mas a defensoria correu a tempo de mudar a decisão.

— Sei que ela tem pouco tempo de vida. Mas ainda tenho esperança de que a medicina encontrará uma cura para minha filha — diz a mãe da menina, Andréia Vasquez de Oliveira, lamentando ainda o fato de a prefeitura também não fornecer regularmente os medicamentos necessários para Yasmin.

Ronaldo Cezar disse que não cabe a ele dar o respirador.

— Só uma home-care (atendimento domiciliar) como essa nos custa mais de R$ 10 mil por mês. Por conta desses casos faltam recursos para nossos programas — afirmou o secretário de saúde.

Conforme mostrou uma série de reportagens do GLOBO que teve início na segunda-feira da semana passada, o número de ações judiciais de pacientes que lutam para obter medicamentos subiu de 728 em 2004 para 1.552 este ano (até o dia 13 deste mês). Há ainda ações de doentes em estado grave que apelam a uma ordem judicial para obter equipamentos, vaga em CTI ou tratamento domiciliar.

A defensora Fernanda Garcia Nunes, titular do Núcleo de Fazenda Pública do órgão, diz que costuma pedir tutela antecipada (uma espécie de liminar) nas ações porque muitos casos envolvem risco de vida:

— Mas, infelizmente, ainda assim as autoridades públicas resistem a cumprir a ordem judicial. Às vezes, vai um oficial de Justiça, expede-se mandado de busca e apreensão, mas de nada adianta. Hoje, 70% de todas as ações que movemos são na área de saúde. A situação é de caos e se agrava a cada ano.

A pedido do GLOBO, o Tribunal de Justiça estimou que, hoje, 15% da demanda de suas dez varas de fazenda pública dizem respeito a ações de doentes em busca de atendimento médico negado pelo poder público.

A gravidade das doenças, somada ao fato de que o poder público sempre recorre das decisões judiciais, está levando pacientes à morte. Apesar de a taxa de letalidade ter caído nos últimos anos com o uso dos coquetéis anti-HIV, a doméstica Joana D’arc Barbosa, de 42 anos, perdeu o filho de 21 apenas um ano depois de ele ter descoberto que era soropositivo. Ela lutou arduamente para interná-lo num CTI, mas a ordem judicial chegou tarde demais. Sem andar e falar, Alexandre morreu cinco dias depois de vencer a batalha para ter acesso à terapia intensiva.

— Apesar de não falar mais, ele ainda abriu os olhos. Chorou muito, me abraçou. Parece que sabia que estava no fim. Vi meu filho morrer aos poucos e não pude fazer nada — afirmou Joana D’arc, que assumiu a netinha Joyce, de 2 anos — que o último exame acusou não ter o HIV — e pretende criá-la com uma indenização que hoje pede ao estado.

— No Hospital Rocha Faria, onde ele foi atendido, não havia vaga no CTI. Ele ficou na enfermaria, numa maca sem colchão. Ao lado dele, alguns pacientes usavam respirador, mas para o meu filho não havia nem aparelho, nem soro.

Até o final da noite de ontem, a Secretaria de Saúde do estado não comentou o problema.

‘O quadro da saúde é desesperador’

Enredos iguais, sofrimentos diferentes. A dona-de-casa Odacilda Agostinho de Albuquerque alimentou a ilusão de que veria o filho José Anderson, de 19 anos, se formar no ensino fundamental. Com a ajuda da mãe, o rapaz tirava de letra a sétima série de um colégio estadual, apesar da distrofia muscular avançada. Todos os dias, ele era empurrado na cadeira de rodas pela mãe até a escola: 40 minutos na ida, 40 minutos na volta. Desde o dia 23 de maio, quando o filho morreu por falta de um respirador, Odacilda guarda de todo o seu esforço apenas a cadeira de rodas e uma dor nas pernas que se tornou crônica. Ela chora ao lembrar que o aparelho poderia ter salvado o filho.

— Brincava dizendo que ele era a minha jóia. Eu era tudo para ele, mas ele também era tudo pra mim — disse, lembrando que a vida sempre foi tão difícil que, dos 10 aos 13 anos, ela carregava-o no colo três vezes por semana até a fisioterapia pois não tinha cadeira de rodas.

Para o auxiliar de enfermagem Miguel Ângelo Pereira, que morreu de Aids aos 31 anos, em julho, nem uma decisão da Justiça, em março, determinando que a prefeitura fornecesse o remédio Cidofovir para tratar infecções oportunistas, foi suficiente. Com o estoque municipal vazio, o medicamento teria que ser importado. O remédio não chegou a tempo.

— A caixa do remédio custava R$ 2.700. Dói saber que eu poderia ter meu filho comigo se ele tivesse sido tratado. Mas as autoridades mostram um descaso total — diz a mãe Neide Matos Vasconcellos, de 60 anos.

Com a irmã de 63 anos com mal de Alzheimer, a dona-de-casa Maria da Glória Silva Barros, de 50 anos, tem há um mês uma ordem judicial para o estado fornecer em 48 horas Olanzapina, medicamento que reduz a agitação desse tipo de paciente, mas até agora nada.

— Fico revoltada. O quadro da saúde no Rio é desesperador. As pessoas não estão mais sofrendo, elas estão morrendo — diz Maria da Glória, que precisa manter todas as portas trancadas, principalmente a da cozinha, para a irmã não se machucar.